Atenção primária, arma na guerra à Covid
Por Rodrigo Oliveira
Desafio sem precedentes para a ciência e a sociedade, a pandemia da Covid-19 cobra respostas céleres e assertivas dos sistemas de saúde, que precisam ser reorganizados em todos os seus componentes para o seu enfrentamento. Especialmente no Brasil, a resposta sanitária está focada, prioritariamente, nos serviços hospitalares, com ações para a ampliação do número de leitos de UTI e respiradores pulmonares. Porém, sem minimizar a importância da estruturação da atenção especializada para os casos mais graves, é preciso ressaltar o papel estratégico da Atenção Primária à Saúde (APS) e trazer para a discussão os gargalos nesse contexto. No Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (Cosems RJ), que presido, nossa atuação, diuturnamente, está concentrada em trabalhar junto aos gestores e técnicos para garantir as condições de acesso à saúde pela população fluminense, enfrentar a pandemia e manter a oferta regular das ações da APS nos municípios.
Primeiro nível de acolhimento do SUS, a atenção primária se caracteriza por um conjunto de ações, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde, com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte positivamente a situação das coletividades. Com uma atenção primária fortalecida, garantimos dados epidemiológicos mais fidedignos, principalmente devido à maior capilaridade para notificação de casos e no fim da linha do cuidado.
Estratégias como a Equipe de Saúde da Família (ESF) desempenham um papel fundamental em tempos de pandemia. Por meio dessa estratégia, é possível descentralizar os atendimentos, ampliar as testagens de casos suspeitos, rastrear contato e o surgimento de casos confirmados, fortalecendo a vigilância epidemiológica e o planejamento de medidas de controle focadas no território. Como ainda não há evidências científicas para um tratamento específico para a Covid-19, o reforço às medidas de prevenção de contágio, como, por exemplo, distanciamento social e isolamento domiciliar de casos suspeitos ou confirmados, bem como seu acompanhamento, podem ser realizados pelas ESFs, principalmente pelos agentes comunitários de saúde em seu trabalho in loco.
Um desafio colocado bem antes da pandemia, o cenário de subfinanciamento da APS foi agravado por políticas públicas recentes. Em 2019, o governo brasileiro lançou uma nova política para a área, a “Previne Brasil”. A iniciativa modificou o financiamento da atenção primária para municípios. No lugar de habitantes e de equipes de ESF, as transferências intergovernamentais passaram a ser calculadas a partir do número de pessoas cadastradas em serviços de atenção primária e de resultados alcançados sobre um grupo selecionado de indicadores.
Desde a divulgação por parte do Ministério da Saúde da proposta dessa alteração – que se concretizou com a publicação da Portaria 2.979 de 12 de novembro de 2019 –, o Cosems RJ vem analisando as consequências do novo modelo de financiamento para os municípios fluminenses e debatendo a questão de como assegurar que não haja perdas significativas de recursos.
Para destrinchar as consequências da nova modalidade de financiamento, montamos um grupo de estudo permanente, que desenvolveu projeções do efeito das novas modalidades de financiamento nos orçamentos dos municípios do estado. Uma dessas projeções mostra que, em 2021, o número de municípios com perda financeira aumenta para 76, representando 82,6% de todos do estado. Estes, segundo as estimativas, terão uma perda total de orçamento para atenção básica de R$ 285 milhões anuais – sempre tomando em conta os níveis de cadastro de julho 2020, sendo improvável que esses números cresçam muito mais em cenário de pandemia.
Os municípios do Estado do Rio estão unidos e mobilizados no enfrentamento dessa grave crise sanitária. Devido à alta transmissibilidade da infecção e na ausência de medicamentos específicos, além das vacinas, são intervenções eficazes para o controle da pandemia as medidas de saúde pública como isolamento, distanciamento social e vigilância dos casos, com o propósito de reduzir o contágio, evitando sofrimento e morte, ao frear a velocidade da pandemia. Ao mesmo tempo, é necessário dotar o sistema de recursos para oferecer a atenção adequada e oportuna.
No último dia 13, encaminhamos à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro uma solicitação oficial, representando todos os municípios fluminenses, de apoio financeiro estadual em caráter emergencial como parte das ações de enfrentamento à pandemia, com o objetivo de incentivar as ações das gestões municipais no âmbito do SUS.
A porta de entrada do paciente de Covid-19 no sistema de saúde é também a atenção primária e, por isso, precisa estar bem equipada e integrada, para cumprir seu papel fundamental no controle e na redução de danos da pandemia. Se faz necessária a garantia do seu bom funcionamento, o que envolve um melhor fortalecimento deste nível de atenção, incluindo a garantia de condições dignas de trabalho e de assistência. Apenas com estas ações integradas teremos sucesso no combate à Covid-19 e fortaleceremos para o futuro o nosso SUS.
*Presidente do Cosems RJ e secretário municipal de saúde de Niterói
Publicado: Jornal O Globo