Luta Antimanicomial: sustentar e resistir
Neste dia da Luta Antimanicomial, o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (COSEMS RJ), celebra os avanços alcançados por todos atores, movimentos e instituições ao longo dos anos de Reforma Psiquiátrica Brasileira. Porém, diante de um cenário nacional ameaçador para as conquistas obtidas na área da Saúde Mental e Atenção Psicossocial, o COSEMS RJ, entende que o momento pressupõe mais que comemorações e sim forte resistência para impedir os retrocessos atuais. Dessa forma, esse documento foi construído a fim de instruir a população, os trabalhadores do SUS os gestores municipais do ERJ sobre os desafios atuais no campo da atenção psicossocial.
Embora seja um campo de trabalho do sistema público brasileiro ainda com muitas lacunas, é fundamental fazer uma retrospectiva de aspectos importantes na construção dessa política pública com base no reconhecimento do direito do cuidado em saúde mental inclusivo, em liberdade e com dignidade.
No contexto da Reforma Sanitária Brasileira, que culmina com a constituição do SUS, a Reforma Psiquiátrica apontava um só caminho: o modelo de cuidado da Atenção Psicossocial, de base comunitária, em liberdade, garantidor de direitos, cujo principal articulador no território é os Centros de Atenção Psicossocial.
Na Política Nacional de Saúde Mental, a Lei nº 10.216, promulgada em 2001, é ponto de virada fundamental, a partir do qual se expandiram os CAPS pelo país. Com a Portaria 3.088, de 2011, essa política se solidificou com base na construção do cuidado em rede envolvendo serviços de saúde da atenção primária e os serviços específicos de saúde mental como os CAPS em suas diferentes modalidades, os Serviços Residenciais Terapêuticos, os leitos de saúde mental em hospitais gerais, Unidades de Acolhimento, entre outros. Esses dispositivos têm sido fundamentais para a construção do cuidado da atenção à crise e para a leitura do desastroso processo de encarceramento em instituições asilares de pessoas em sofrimento mental ocorrido nos anos 60, 70 e 80. Isto permitiu que os manicômios, marcadamente lugares de violações brutais dos direitos humanos fossem fechados progressivamente.
A política de saúde mental avançou no Brasil numa mesma direção até 2016. Ao passo que atrelado a isso, as ações de saúde mental na infância e adolescência também se expandiram. Para os usuários de álcool e outras drogas, a articulação entre a Atenção Psicossocial e a Redução de Danos possibilitou profundo alargamento das ações de cuidado e o acesso para usuários muito graves, com múltiplas vulnerabilidades.
No entanto, a partir do final de 2016, em um ritmo de marcha a ré, verificou-se cada vez mais tomadas de decisão que desfinanciam e desrespeitam as normas da rede de atenção Psicossocial construída pelo controle social. Como um dos exemplos, temos a falta de transparência do governo federal em relação à RAPS, com a interrupção do relatório anual “Saúde Mental em Dados”, publicado desde 2001.
Deste modo, o COSEMS RJ, observa o contínuo descaso dos gestores federais em relação aos aspectos fundamentais da Lei nº 10.216/2001, com um movimento contínuo de retrocessos na Política de Saúde Mental que são:
- A ampliação do financiamento público centrado em serviços que não correspondem as necessidades clínicas de boas práticas em saúde mental. Por exemplo: os serviços hospitalocêntricos e comunidades terapêuticas;
- A estagnação de financiamento federal para os serviços de caráter territorial, como os Centros de Atenção Psicossocial e os Serviços Residenciais Terapêuticos, que não têm reajustes de custeio há muitos anos e vêm sofrendo sucateamento progressivo; desvinculando as ações federais do SUS e transferindo os recursos das ações de cuidado em álcool e drogas ao Ministério da Cidadania de maneira a escapar das instâncias de pactuação do SUS e levar recursos financeiros que deveriam ser empregados na Rede de Atenção Psicossocial para formas de cuidado exclusivamente voltadas para a abstinência, como as Comunidades Terapêuticas, em detrimento das inúmeras denúncias de violações de direitos humanos (Fonte: Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas -2017); também vale destacar o fechamento por longos períodos do Sistema de Apoio à Implantação de Políticas de Saúde (SAIPS), inviabilizando a expansão da rede de saúde mental, que passa a ter dificuldades de demandar recursos para novos serviços; entre outras formas de desfinanciar a RAPS, com forte impacto nos municípios com menos de 150 mil habitantes e mesmo diante da necessidade de sua expansão para atender às necessidades da população.
No estado do Rio de Janeiro, temos atualmente 27 SRT e 4 CAPS aguardando análise do Ministério da Saúde que mantém o seu sistema de aprovação fechado mesmo com sequenciais solicitações de todos os estados para a sua reabertura, além de três SRT, dois CAPS e 19 leitos de saúde mental em hospital geral, todos já aprovados, e aguardando habilitação e o repasse do recurso. O número não é maior porque o SAIPS segue fechado e a necessária expansão da RAPS segue constrangida. Diante disso, os serviços que se encontram nos parâmetros considerados adequados funcionam com o esforço dos municípios e suporte do cofinanciamento estadual (COFI-RAPS) em respeito aos direitos das pessoas com problemas de saúde mental.
Desde 2003, o estado do Rio de Janeiro vem num progressivo processo de substituição de um modelo manicomial para o modelo de cuidado da Atenção Psicossocial. Trata-se de um trabalho criterioso que, a cada manicômio fechado, reinseriu usuários na sociedade com amplo e cuidadoso trabalho clínico, implantou 249 SRT com aproximadamente 1620 moradores e criou serviços de base comunitária para atender às necessidades de saúde mental. Foram 29 manicômios e mais de 4300 leitos fechados, todos com práticas de cuidado comprovadamente inadequadas. Portanto, consideramos que o caminho que temos seguido é fundamental para garantir o cuidado de qualidade que a população fluminense merece. Assim como, entendemos como fora do âmbito do SUS a direção da política proposta pelo Ministério da Saúde.
Recentemente, nos surpreendemos com a proposta do Ministério da Saúde de um novo serviço, o CAPS IV. Esta ideia não passou por nenhum colegiado de discussão com os estados e municípios. Tal serviço, visto como solução para acolhimento à crise pelo governo federal, distorce a lógica de território como espaço vivo e dinâmico, além de mudar a essência do CAPS como serviço substitutivo, comunitário e de reinserção social. Trata-se de um dispositivo para uma população de 200 mil habitantes com a possibilidade de ter até 50 leitos, posto de enfermagem e estrutura tal qual a hospitalar. Surpreende ainda a disponibilidade financeira para a implantação deste serviço, já que o fechamento do SAIPS vinha sendo justificado por alegada contenção orçamentária. O Ministério da Saúde prevê significativo montante de recurso de custeio para este serviço, enquanto aponta fragilidades no CAPS III para acolhimento à crise, sendo que as mesmas ocorrem, inclusive, por falta de investimento em qualificação e ampliação dos mesmos por parte do Ministério da Saúde.
Dessa forma, torna-se urgente fortalecer e investir nos CAPS III, II e I, nos SRT, nos leitos de saúde mental em hospitais gerais, assim como em outros serviços e ações de saúde que atuam dentro da lógica antimanicomial. O COSEMS RJ defende que é necessário prosseguir fechando leitos em hospitais psiquiátricos e fortalecendo e ampliando a rede territorial existente. Criar CAPS IV, estimular o retorno de hospitais psiquiátricos e financiar comunidades terapêuticas é mudar a política de saúde mental e o COSEMS RJ repudia tal retrocesso.