NOTA COSEMS/RJ: Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade
As discussões para a instituição da Política Nacional de Atenção Cardiovascular começaram em 2003, envolvendo diversas especialidades nas suas respectivas sociedades brasileiras, resultando na emissão da Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade (PNACAC), em junho de 2004(Pinto, Fraga, & Freitas, 2012). O texto destacava o papel das Secretarias de Estado da Saúde no planejamento das redes hierarquizadas de Atenção em Alta Complexidade Cardiovascular (BRASIL/MS, 2004).
Em seguida, a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) do Ministério da Saúde emitiu, no mesmo ano, a Portaria SAS/MS n°210/2004, para regulamentar a PNACAC (BRASIL, SAS/MS, 2004) que definiu a participação das Unidades de Assistência em Alta Complexidade Cardiovascular e os Centros de Referência em Alta Complexidade Cardiovascular na rede de atenção cardiovascular, suas aptidões e qualidades. A norma ainda lista o rol de especialidades passíveis de habilitação: Cirurgia Cardiovascular; Cirurgia Cardiovascular Pediátrica; Cirurgia Vascular; Procedimentos da Cardiologia Intervencionista; Procedimentos Endovasculares Extracardíacos; e Laboratório de Eletrofisiologia.
A política emitida à época trouxe importantes avanços para a atenção cardiovascular e reforçou, em seus textos introdutórios, as premissas e diretrizes do SUS: “atendimento integral aos portadores de patologias cardiovasculares; necessidade de organizar a assistência aos referidos pacientes, em serviços hierarquizados e regionalizados, e com base nos princípios da universalidade e integralidade das ações de saúde; necessidade de garantir a esses pacientes a assistência nos vários níveis de complexidade, por intermédio de equipes multiprofissionais, utilizando-se de técnicas e métodos terapêuticos específicos; e a necessidade de uma nova conformação das Redes Estaduais e/ou Regionais de Atenção em Alta Complexidade Cardiovascular” (BRASIL/MS, 2004).
Entretanto, os textos destacavam os mecanismos de credenciamento/habilitação dos serviços de alta complexidade, mas sem aprofundar o papel dos demais níveis da atenção. Abordava em algumas passagens a necessidade de se estabelecer fluxos de referência e contrarreferência; citava a adesão à Política Nacional de Humanização; e a exigência de ações de promoção, prevenção e detecção precoce das doenças cardiovasculares; mas não tratava com o detalhamento necessário as ações intersetoriais que envolvem as linhas de cuidados da atenção cardiológica. A norma regulamentadora não discorria, por exemplo, sobre as condutas para o acolhimento, acompanhamento e tratamento do paciente portador de agravo cardiovascular, desde a sua entrada no sistema via Atenção Primária à Saúde (APS) ou via a Rede de Urgência e Emergência (RUE), percorrendo às etapas de diagnóstico e terapia, muitas vezes inerentes a média complexidade, até o acesso aos serviços mais complexos. A política também listava exigências de parâmetros populacionais, do aporte tecnológico e de recursos humanos, que ignoravam as especificidades regionais de um país com porte continental. Dessa forma, não contribuiu para reduzir a concentração de serviços nas regiões mais favorecidas com especialistas e recursos financeiros disponíveis, o Sudeste e o Sul do país (PINTO, FRAGA e FREITAS, 2012).
Nos anos de 2012 e 2018, houve algumas alterações pontuais na política nacional com a suspensão dos parâmetros populacionais e a atualização dos critérios para habilitação dos Centros de Referência em Alta Complexidade Cardiovascular, respectivamente (BRASIL, MS/SAS, 2012; e 2018). A norma de 2018 flexibilizou a participação de hospitais sem certificação pelo Ministério da Educação como hospital de ensino, mas mantinha a obrigatoriedade de que possuíssem estrutura de pesquisa e ensino organizada.
As alterações mais recentes da PNACAC aconteceram a partir de estudos elaborados pela Coordenação Geral de Atenção Especializada, do Departamento de Atenção Especializada e Temática da atual Secretaria de Atenção Especializada (SAES) do Ministério – antiga SAS –, culminando na emissão da Portaria GM/MS nº. 3693/2021. A norma reduziu significativamente os valores de Órteses, Próteses e Materiais Especiais utilizados nos procedimentos da atenção cardiovascular e são justificadas como um “potencial de gerar a otimização dos recursos públicos” (BRASIL/MS, 2021). Na tabela1, abaixo, são demonstradas as reduções de valores trazidas pelo novo regramento:
Tabela 1: Mudanças nos valores de órteses, próteses e materiais especiais utilizados nos procedimentos da atenção cardiovasculares, 2021
Vale destacar que, dentre os materiais reajustados, os stents para artérias coronarianas tem reduções significativas em seus valores. Somado isso, verificamos que dentre os procedimentos mais frequentes da atenção cardiovascular de alta complexidade, as angioplastias coronarianas – códigos 04.06.03.003-0 e 04.06.03.002-2 – lideram o ranking dos procedimentos mais frequentes executados no ERJ no ano de 2021, com cerca de 43% do total de procedimentos realizados nesse ano:
Tabela 2: Quantitativo de internações hospitalares das dez principais cirurgias cardiovasculares, no ERJ, ano 2021.
A norma trouxe à tona várias questões sobre a subfinanciamento do SUS e a histórica defasagem da tabela do Sistema de Gerenciamento da Tabela de procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS (SIGTAP), utilizada como referência para a remuneração dos procedimentos do SUS. Negociações tripartites, envolvendo o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), e o Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (CONASEMS), prorrogaram os efeitos financeiros da Portaria e levaram ao anúncio do Programa de Qualificação da Assistência Cardiovascular, QualiSUS Cardio, na 4ª reunião ordinária da Comissão Intergestores Tripartite (CIT),realizada em 28 de abril de 2022 (BRASIL/MS, abril de 2022).
O QualiSUS Cárdio foi oficialmente apresentado através de um pacote de normas ministeriais emitidas em 12 de maio de 2022, pelas portarias GM/MS nº. 1098, 1099 e 1100. A primeira delas (BRASIL/MS,2022a) trouxe novos ajustes nos valores dos procedimentos da atenção cardiovascular: procedimentos diagnósticos – cateterismo cardíaco e ecocardiografia transtorácica; e na grande maioria procedimentos cirúrgicos de todas as áreas da atenção cardiovascular: cardíaca, vascular, intervencionista, endovascular e os estudos eletrofisiológicos.
Nas normas subsequentes foram oficializados o Programa QualiSUS Cardio e a definição do seu primeiro Ciclo. O QualiSUS Cardio se propõe a avaliar desempenho dos estabelecimentos de saúde no âmbito da alta complexidade cardiovascular, a partir da análise de indicadores relativos ao volume, à qualidade e à complexidade da assistência ofertada; condicionou transferências financeiras ao desempenho das unidades hospitalares; e da ênfase na instituição da Câmara Técnica Assessora do QualiSUS Cardio com a participação do Ministério da Saúde e de Sociedades Brasileiras das diversas especialidades da cardiologia (BRASIL/MS, 2022b).
A última norma do pacote de medidas que definiu o primeiro ciclo do QualiSUS Cardio, destacou o estabelecimento de dois critérios para a avaliação dos serviços habilitados da Rede de Atenção Cardiovascular: um primeiro critério com aferição quantitativa dos procedimentos realizados; e um segundo critério e com a aferição de indicadores combinados denominado Índice Combinado de Assistência Cardiovascular (IC-Cárdio) – Tempo médio de permanência; Taxa de mortalidade operatória; Taxa de reinternação em até 30 (trinta) dias do ato operatório;Percentual de cumprimento do parâmetro mínimo de produção; e Percentual de procedimentos estratégicos. Além disso, o programa ainda define percentuais de ajuste em quatro níveis, com os respectivos percentuais de incentivo financeiro – A (75%), B (60%), C (45%) e D (30%) – calculado sobre os valores relativos ao Total Hospitalar (Serviço Hospitalar e Serviço Profissional) dos procedimentos da atenção cardíaca listados abaixo (BRASIL/MS, 2022c):
Quadro 1: Procedimentos incentivados no primeiro ciclo do QualiSUS Cardio
As inovações trazidas a partir de dezembro de 2021 na PNACAC contém iniciativas nos campos do controle, avaliação e auditoria intrínsecas ao papel regulador do Ministério da Saúde, necessárias e relevantes não só para essa rede de atenção. Acontece que, mudanças estruturantes de políticas tão importantes deveriam vir precedidas de um debate amplo envolvendo os diversos segmentos que, reconhecidamente, somariam nesse processo de discussão. Outras condutas adotadas outrora, como as Consultas Públicas, também facilitariam o consenso e as pactuações Intergestores.
Os novos regramentos também abordam uma questão sensível nos debates que cercam o SUS: o financiamento, ou melhor, subfinanciamento. As alterações realizadas não consideram as defasagens de mais de 15 anos da tabela de referência, sendo que as últimas alterações somente ajustam procedimentos da atenção cardiovascular[1]. Assim, alguns procedimentos com relevância extrema para a terapêutica de cardiopatias, conforme abordado anteriormente mantiveram-se minorados, desconsiderando os fatores econômicos que contribuíram para ampliar as defasagens de valores: inflação, insumos dolarizados, etc. Outro ponto que destacamos e que permanece interrogado na nova política é o reajuste somente da porção Serviços Profissionais (SP) da tabela, não incidindo reajuste na porção Serviço Hospitalar (SH).
No Estado do Rio de Janeiro a Política Estadual de Atenção Cardiovascular (Rio de Janeiro, 2022), dentro da lógica do financiamento tripartite, incrementa os valores de procedimentos específicos da atenção cardiovascular, porém sem minimizar os principais danos ocasionados pela Política Nacional. Outro fator relevante no ERJ são as unidades públicas habilitadas com serviços de Alta Complexidade na Assistência Cardiovascular, presentes principalmente na região Metropolitana I, conforme demonstrado abaixo:
Quadro 2. Estabelecimentos habilitados para alta complexidade cardiovascular, segundo município e região, Estado do Rio de Janeiro, 2021
Fonte: Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES), 2021.
Entretanto, o peso das unidades hospitalares privadas com ou sem fins lucrativos, no volume de procedimentos executados na rede de atenção cardiovascular do ERJ observada nos últimos doze meses é significamente maior (57,34%).
Quadro 3. Quantidade de internações por Natureza Jurídica segundo Forma Organização realizado, Estado do Rio de Janeiro, set/2021 a ago/2022
Como agravante, ainda temos a crise do abastecimento dos contrastes a nível mundial e com consequências severas no nosso país, principalmente no acesso aos cateterismos cardíacos e nas angioplastias.
Nesse cenário, os gestores municipais, por vezes, se encontram pressionados pelas unidades privadas da Rede de Atenção Cardiovascular, que por sua vez, após as alterações marcantes dos valores de referência da tabela SUS, se sentem no direito de requerer um reequilíbrio dos valores minorados. Fato é que continuamos com filas crescentes nos sistemas de regulação do ERJ, com consequências severas para a população desassistida, em uma área que representa a maior causa de mortalidade no Brasil e no mundo.
Referências
RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado da Saúde. Resolução SES n.º2716 de 09 de maio de 2022. Institui o cofinanciamento estadual às unidades de assistência em alta complexidade cardiovascular, no âmbito do estado do Rio de Janeiro
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n° 1169, de 15 de junho de 2004. Institui a Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade, e dá outras providências. Diário Oficial 2004; seção 1, n.115, p.57.
Portaria GM/MS nº. 3693 de 17 de dezembro de 2021. Altera atributos de procedimentos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUSe estabelece a dedução de recurso do Bloco de Manutenção das Ações e Serviços Públicos de Saúde – Grupo de Atenção Especializada, incorporado ao limite financeiro de Média e Alta Complexidade – MAC dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Diário Oficial 2021; seção 1, n.117, p.43.
BRASIL. Ministério da Saúde. Programa QualiSUS Cardio (apresentação em ppt, abril de 2022). Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/gestao-do-sus/articulacao-interfederativa/cit/pautas-de-reunioes-e-resumos-cit/2022/abril/programa-qualisus-cardio/view; acesso em: 01/08/2022.
(a). Portaria GM/MS nº 1098, de 12 de maio de 2022. Altera atributos de procedimentos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS. Diário Oficial 2022; seção 1, n.117, p.43.
(b). Portaria GM/MS nº. 1099, de 12 de maio de 2022. Institui o Programa de Qualificação da Assistência Cardiovascular – QualiSUS Cardio. Diário Oficial 2022; seção 1, n.117, p.43
(c). Portaria GM/MS nº 1.100 de 12 de maio de 2022. Define o 1º Ciclo do Programa de Qualificação da Assistência Cardiovascular, QualiSUS Cardio. Diário Oficial 2022; seção 1, n.117, p.43.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria SAS/MS nº. 210, de 15 de junho de 2004. Regulamenta a Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade. Diário Oficial 2004; seção 1, n.117, p.43.
. Portaria SAS/MS n° 433, de 15 de maio de 2012. Suspende os parâmetros populacionais para habilitação. Diário Oficial 2012; seção 1, n.115, p.57
. Portaria SAS/MS n° 1846, de 21 de novembro de 2018. Atualiza critérios para habilitação de hospital como Centro de Referência em Alta Complexidade Cardiovascular. Diário Oficial 2018; seção 1, n.115, p.57
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[1] Portaria SAS n°505 de 28 de setembro de 2010: Altera os valores dos procedimentos da cirurgia cardiovascular.