Nova proposta de política para atenção básica é tema de evento no Cosems
Realizado na última sexta-feira (18/10),o seminário Proposta do Ministério da Saúde da mudança da modalidade de transferência de recursos/financiamento da Atenção Primária em Saúde reuniu 32 secretários municipais de saúde e 300 participantes, entre pesquisadores e trabalhadores da saúde a representantes das gestões e dos conselhos de saúde municipais, para debater um projeto que pode promover mudanças profundas no financiamento da área.A nova proposta de Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) foi apresentadapelo Secretário Nacional de Atenção Primária, Erno Harzhein, como parte de um ciclo de debates que vem sendo realizado em diversos estados. A mesa de discussão foi composta, ainda, por Hisham Mohamed Hamida, diretor financeiro do Conasems, André Schimidt da Silva, especialista em gestão de saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, eLígia Giovanella, da Fundação Oswaldo Cruz e da Abrasco.
O projeto de reformulação da PNAB traz diversas mudanças, entre elas o fim do Piso de Atenção Básica Fixo (PAB Fixo), recurso regular pago aos municípios de acordo com o número estimado de sua população total, o fim do pagamento por equipe de saúde da família, principal componente do PAB Variável, eo fim do pagamento por equipe de núcleo ampliado de saúde da família. Além disso, substituio Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ) por outras metodologias de avaliação de desempenho.
A nova proposta prevê o agrupamento do financiamento federal em três eixos: o primeiro, de capitação ponderada, introduz o pagamento por pessoa cadastrada na APS (capitação ponderada), que varia de acordo com a classificação dos municípios na tipologia rural-urbano do IBGE e dos cadastros individuais no e-SUS. O projeto inclui valores superiores por pessoas com até cinco e a partir de 65 anos, usuários dos programas Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada e beneficiários previdenciários que recebam até dois salários mínimos. Além dele, a verba da atenção básica se dividirá em pagamento por desempenho, a partir de critérios ainda não definidos, e incentivos a programas específicos/estratégicos – fee forservice.
Na mesa de abertura, a presidente do Cosems RJ, Maria Conceição de Souza Rocha, destacou a preocupação geral com a perda derecursos que a proposta pode trazer e destacou que as modificações na PNAD precisam ajudar os municípios a financiar suas ações na área. “A atenção básica é uma área estratégica e o subfinanciamento estrutural do SUS tem feito os municípios arcarem cada vez mais com esse investimento. Eles já estão sobrecarregados”, avaliou.
O secretário estadual de saúde do Rio de Janeiro, Edmar Santos,elogiou o trabalho do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ressaltou a necessidade de valorizar a atenção básica como área estratégica e ponderou que toda proposta de mudança é naturalmente traumática, pois sempre gera receios e expectativas. “É uma proposta que acaba com o repasse fixo, isso nos gera uma sério de questões, sem dúvida, mas queremos ser apoiadores críticos, no sentido de uma construção coletiva de uma política melhor para todos”, afirmou.
Um dos aspectos destacados pelo secretário em relação à nova política foi a classificação dos municípios. Segundo ele, é preciso levar em conta questões como a densidade populacional e a dificuldade de acesso nesse processo, pois muitos lugares classificados como urbanos têm áreas que se caracterizam como intermediárias ou rurais. O próprio município do Rio de Janeiro tem áreas de densidade baixa e, pela questão da violência, locais muito difíceis de serem acessados. O secretário também reforçou que é preciso tempo para discussão do projeto quando este estiver finalizado, com a incorporação de todas as questões e sugestões.
Em seguida, o Secretário Nacional de Atenção Primária, Erno Harzhein apresentou o novo modelo misto de financiamento, destacando-o como um exercício ampliado de pactuação. “Temos discutido o modelo há meses junto com CONASS e CONASEMS e já realizamos 15 apresentações em todo o país, cada local com seus gestores, instituições, academia, e esperoque cheguemos numa proposta muito sólida”, afirmou. Ele destacou que o projeto tem como objetivos colocar as pessoas (e suas características individuais que se somam) no centro do processo, aumentara autonomia da sua gestãoe estimular a transparência na avaliação.
Segundo Harzhein, a política de atenção básica vigente, que realiza o pagamento por unidade instalada e foi fundamental para a indução da estratégia de saúde da família nas décadas passadas, está estagnada, com um índice ainda relativamentealto de internações por razões caracterizadas como sensíveis à Atenção Básica com uma parcela da população em condições vulneráveis desassistida. “Temos 30 milhões de brasileiros que recebem bolsa família ou outros benefícios previdenciários de até 2 salários mínimos e que não estão cadastrados em nenhuma equipe de atenção primaria, queremos chegar a essas pessoas”, argumentou. “Além disso, temos um grande bloco de pagamento por oferta, ligado a programas do Ministério da Saúde, sem critérios muito bem estabelecidos de credenciamento, e o pagamento por desempenho tem indicadores demais e um acompanhamento insuficiente.”
A nova avaliação por desempenho vai utilizar sete indicadores em 2020, ainda não definidos. A previsão é que outros sete sejam introduzidos nos anos seguintes, totalizando 21 indicadores até 2022, selecionados com base na relevância clínica e epidemiológica, mas que também possibilitem avaliar a totalidade do trabalho e a qualidade geral dos serviços ofertados. “Qualquer modelo de financiamento não pode ser estático, precisa ser ajustável à necessidade de saúde das pessoas e a situações epidemiológicas novas”, ponderou.
Um dos pontos mais destacados pelo secretário foi o aumento de recursos, mesmo num cenário de congelamento. Segundo ele, a maior parte dos municípios ganhará recursos, com um aumento real de R$ 2,6 bilhões de reais, correspondente ao direcionamento de 60% do aumento atrelado ao IPCA para a área de atenção primária em 2020 e a uma maior eficiência na execução dos recursos destinados à área (que hoje fica abaixo dos 90%). Porém, segundo os cálculos do Ministério, alguns municípios sairiam perdendo com a mudança, num total que chega a R$ 293 milhões. O problema foi abordado em reuniões anteriores e a solução elaborada é a criação de uma regra de transição, com o recebimento de um quarto do valor atual do PAB fixo durante todo o ano de transição e com um período adaptação para o início do pagamento por desempenho. “De qualquer forma, garantimos que os municípios incluídos nesse caso não vão perder nada nos próximos anos”, comprometeu-se o secretário.
Hisham Mohamed Hamida, diretor financeiro do Conasems, lembrou que os municípios estão insatisfeitos e sobrecarregados com a política atual, que já tem 20 anos. Ele defendeu que a nova proposta traz ganhos, em especial considerado ocenário de desfinanciamento e as garantias de que os municípios não tenham perdas no primeiro ano. “O objetivo desses encontros é ouvir, a proposta reflete nos municípios como um todo e queremos uma gestão municipal cada vez mais eficiente, sustentável, que garanta o acesso à população”, avaliou. “Embora não tenha aumento significativo de recursos, a proposta está bem fundamentada, e não altera a atuação dos profissionais de atenção básica, mas aumenta a autonomia do gestor, de acordo com a necessidade dos municípios, fortalecendo o planejamento local e aumentando a eficiência”, defendeu. Hamida lembrou, ainda, que a metodologia ainda não foi finalizada e por isso mesmo é fundamental ouvir os estados.
André Schhimtd, representando o Cosems, no entanto, apresentouum cenário mais preocupante. Ele comandou um estudo de impactos financeiros nos municípiosdo Rio de Janeiro, com o objetivo de subsidiar tecnicamente o debate. Uma vez que as regras só estão mais claras no que se refere ao componente 1 da nova política, referente à capitação ponderada, só este componente foi considerado. Partindo da situação de cadastro atual, existem cerca de 4 milhões de pessoas cadastradas no e-SUS no estado (23% da população total) e considerando os valores médios ofertados pela tipologia de cada município, os repasses federais seriam reduzidos a 37,15% se comparados ao valor recebido em 2018, um total de mais de R$ 400 milhões de perda. Em outro cenário, que simula a projeção de recursos captados considerando a população potencialmente cadastrável do município, dada sua capacidade instalada atual, nova perda: o repasse final reduz 4,68% de recursos em relaçãoao que foi recebido no ano de 2018.
“Esses valores não correspondem necessariamente a perdas, mas a uma mudança importante na origem dos recursos, que passariam a vir dos demais componentes. Porém, se a verba que era fixa vai ser revertida para indicadores de desempenho que ainda são desconhecidos os gestores precisam de mais clareza para fazer essa discussão”, avaliou. “Não temos dados para simular os demais componentes, precisamos de documentos, tabelas, material de referência do Ministério da Saúde para que equipes técnicas e qualificadas em todos os estados possam fazer uma avaliação mais adequada, não existe nenhuma documentação desse tipo”, lamentou.
Schhimtd também destacou que a SAPS/MS veiculou nota técnica com metas de cadastro por município. Tendo como ponto de partida a tipologia rural-urbano do IBGE, foram atribuídas metas para as equipesde saúde dafamíliados municípios. “As metas trazem distorções importantes. Muitos municípios classificados como urbanos não possuem densidade populacional suficiente para atingir com facilidade a previsão de pessoas por unidades de atenção primária, o que pode levar ao aumento significativo da distância entre os usuários e as unidades de referência e à redução no número de equipes de saúde da família no interior, reduzindo a qualidade da atenção e afetando os próprios indicadores de desempenho”, argumentou.
Ligia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e da Abrasco, também destacou os riscos que existem na mudança da PNAB. Segundo ela, a medida não pode ser interpretada independentemente do cenário de cortes e retrocessos que existe no Brasil. “Essa proposta significa que os municípios irão renunciar à única remuneração federal baseada em população para aplicação de forma livre nessa área”, destacou. “Isso traz riscos muito grandes, como uma possível redução da estratégia de saúde da família, sem que haja qualquer garantia de que eles terão mais recursos por conta dedesempenho.”
A pesquisadora pediu ao Conasems para ter muita cautela no processo de desenvolvimento dessa nova política em parceria com o Ministério da Saúde e sugeriu que os membros do Conselho reflitam para além de um possível ano de transição. “Eu acredito que quatro meses de discussão é um tempo muito curto para uma mudança tão drástica, é preciso refinar muito essa proposta para chegar a uma norma que seja boa para todos e que impeça retrocessos”, avaliou. “É preciso lembrar que eficiência é objetivo subordinado de qualquer política pública, o objetivo principal sempre é garantir o acesso de qualidade. Quando a eficiência se torna objetivo principal, o resultado é sempre o corte puro e simples. Estamos num momento de congelamento de investimentos com base num discurso de que o SUS pesa muito no PIB do Brasil, o que não é verdade. A proporção de investimento público na saúde é muito menor no Brasil do que em outros países com sistemas universais, como a Inglaterra, por exemplo.” A presidente do Cosems, Maria Conceição, encerrou o encontro elogiando a iniciativa de estabelecer um diálogo com os estados e municípios, mas ressaltando que é preciso tornar a proposta mais transparente e concreta para que seja possível avaliar tecnicamente seus impactos. “Nossa sensação é de que a proposta está bem construída, mas ainda estamos muito inseguros em relação a ela, sobre as bases de dados utilizadas, as variáveis que utiliza, a forma de avaliação e a capacidade execução da totalidade dos recursos, de forma a garantir um aumento real de verbas”, explicou. “O que nos aflige mais é a pressa para a pactuação de uma proposta como essa ainda em 2019. Primeiro o Ministério precisa disponibilizar materiais de referência e bases de dados da proposta para podermos avaliar com calma.oOutras propostas semelhantes levaram de 2 a 4 anos para serem construídas.